quarta-feira, 8 de julho de 2009

O RISO E A CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA: PENSANDO A RENOVAÇÃO DA HISTÓRIA POLÍTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

ZOOLOGIA POLÍTICA NO CONTEXTO DO IMPÉRIO

É de fundamental importância começarmos pelo presente. Quem, no seu município ou estado, nunca ouviu alguém colocar apelido animalesco nos partidos políticos ou nos próprios candidatos ou eleitores, por extensão? Você lembra de algum? Que tal: bacurau, tucano, cururu, ...? Pois bem, essa prática cultural política não é de hoje. No século XIX, no Brasil, durante o período do Império, a zoologia política foi bastante utilizada.
Os famosos apelidos se situam no âmbito das disputas e confrontos políticos baseados na valorização de uns e depreciação de outros. No século XIX, valorizava-se o humano, tido como “racional” em detrimento dos outros animais, tidos como irracionais. Assim, quando se apelidava algum partido com nomes animalescos, o objetivo era desqualificar-lhe e aos seus seguidores, comparando-os a seres “irracionais”, portanto, a animais.
A visão do mundo, no XIX, durante os tempos modernos, era bastante humanista. O pensamento pode ser resumido nas idéias de que a razão humana, a ciência e a tecnologia, só poderiam trazer o “progresso”, a “civilização” e a felicidade humana. Será?
No tocante à política, o Estado Nacional se colocava como a estrela guia da sociedade, ou seja, para o discurso ideológico da Monarquia, o único regime político capaz de levar a nação brasileira nos rumos do “progresso” e da “civilização”, era a monarquia constitucional centralizada no Imperador. A República, na visão deles, gerava “anarquia” e esfacelamento.
A selvageria, no contexto do século XIX, corresponderia ao “mau comportamento” político. O que era ser “mal comportado” politicamente naquele tempo? Aquele cidadão rebelde, não patriótico, o que discordava, ou seja, “as víboras da pátria, a loucura contra a razão, enfim, a barbárie contra a civilização”. (MOREL, 1998). Com isso, procurava-se delimitar fronteiras no terreno político estabelecendo o que era permitido ou não no debate público.
Os “exaltados”, membros desse partido político que discordava da Monarquia e sinalizava na defesa da República, eram sempre associados à imagens de animais. Cipriano Barata era alvo predileto desses insultos. O Jornal Atalaia, de 1823, assim se reporta a ele e seus partidário: “A vista disto, gritem até que arrebentem, os imitadores das Galinhas de Guiné”, ou ainda “Eis a linguagem dos Franchinotes, que Voltaire appelida meios Tigres e meios Macacos.”
Como podemos observar, os partidários da Monarquia definiam a linguagem política dos “exaltados” como gritos “selvagens” e ameaçadores. Havia toda uma representação que procurava desqualificar a oposição política.
Utilizando representações semelhantes, os monarquistas brasileiros procuravam insultar os vizinhos países latino-americanos. Enquanto o Brasil era monárquico, aqueles, desde a emancipação da Espanha adotaram o regime republicano. O trono imperial do Brasil buscava legitimar o regime da Monarquia como o único que garantiria a centralização territorial e conduziria a nação no caminho futuro do “progresso” e da “civilização”. Para isso, era preciso falar do outro regime, a República, aquele que na ótica do império só poderia gerar “anarquia” e esfacelamento, tal qual nos países vizinhos. O Jornal Gazeta do Brasil, de 1827, noticia uma matéria que faz alusão à animalização das vizinhas repúblicas latino-americanas se referindo à Colômbia como “onças colombianas”.
Entretanto, precisamos deixar evidente que os acusados de “selvageria” política também revidavam. Por exemplo, os absolutistas (partidários do Imperador) eram tratados como “cães damnados”, ao passo que os monarcas D. João VI e D. Pedro I foram apelidados de “feras coroadas”.
Além dos conflitos entre liberais e absolutistas, outras camadas da população eram envolvidas na discussão. Os escravos, por exemplo, não eram considerados humanos, eram tratados como animais irracionais. Conforme assinala o Jornal Nova Luz Brasileira, em 1830:

O escravo nem possue Pátria, nem prosperidade, nem religião, nem o natural ser de homem: escravo não é exactamente homem; porque não estando de posse de seus direitos naturaes próprios que constituem sua excencia.

Os partidários do Antigo Regime português, aqueles que se opunham à independência do Brasil eram tratados como feras. Sendo assim, pelo discurso liberal do Império, absolutistas (que defendiam interesses portugueses) e escravos (que não eram considerados seres humanos, e sim, animais) eram adversários das liberdades modernas, como as feras se opunham aos seres humanos.
Conforme já dissemos acima, havia resistência por parte dos acusados de zoologia política. Reagiam tanto revidando as acusações na mesma moeda, também com insultos animalescos, assim como também reagiam quando alguns assumiam as características “animais” transformando-as em arma de combate político. O historiador Marcos Morel nos fornece alguns exemplos. Um deles é a quantidade de jornais que exibiam em seus títulos, no século XIX, no Rio de Janeiro, referências a animais: O Macaco Brasileiro, O Papagaio, O Beija-Flor ou O Minhoca.
A animalização se tornou tão comum no vocabulário político da época que os insultados passavam a se utilizar do adjetivo zoológico, transformando em adjetivo positivo. O Jornal Beija-Flor, por exemplo, construiu uma representação positiva em seu nome. Ele se colocava tal qual o animal, “portador de uma voz fina e delicada, em oposição à brutalidade dos outros jornais (...)” (MOREL, 1998).
Além dessas imagens, outras circularam por dentro do vocabulário político do XIX. No contexto da independência do Brasil, os brasileiros (que defendiam a independência) eram sempre comparados aos caprinos: bodes, cabras, cabritos. Essa imagem se associava a questão da voz, da busca de expressão: o cabrito que berra.
Eram os portugueses que assim se referiam aos brasileiros, mesmo após a independência. Os ofendidos, evidentemente, resistiam simbolicamente, chamando os portugueses de “caiados bodes de Portugal.”. Os brasileiros, às vezes, se utilizavam dessa identidade de bode transformando em positividade, a exemplo de um homem que publicou no Jornal Aurora Fluminense, em 1831, afirmando que era “O cabrito que não se deixa comer”, demonstrando ter força diante dos portugueses.
A recuperação que os brasileiros fizeram do adjetivo de cabra, tornando uma imagem positiva, pode ser compreendida na mitologia. Aí, a cabra aparece como uma figura matricial, protetora, ao mesmo tempo em que é livre e ágil. Nas lojas maçônicas da época, a imagem do bode estava presente, o que é possível pensar que foram os maçons portugueses que divulgaram a imagem dos brasileiros como bodes.
O bode, na mitologia dos povos antigos, desempenhava duplo papel: eram símbolos de potência, santo, representante do fogo do sacrifício, e por outro lado era visto como satânico, corrupto, maléfico. Segundo Morel (1998), estudioso da zoologia política no Brasil do XIX, a documentação da época sinaliza quanto a existência das duas imagens: satânica e benéfica.
A imagem de caprinos quando era destinada aos escravos tinha características raciais. Vejamos o anúncio publicado no Jornal Diário Fluminense, em 1830: “Vende-se na Rua dos Invallidos nº 52, huma linda rapariga cabra, muito bem feita, com abundancia de elite, e sabe cozer, tecer, fiar, cozinhar, e engoma liso, faz também queijos”. Ou seja, quem ler esse anúncio pensa que o que está a venda é um animal de boas qualidades.
Se os portugueses construíram representações animalescas dos brasileiros, procurando desqualificá-los, estes também não ficavam passivamente e também resistiam. Todos aqueles que fossem inimigos da independência, por isso partidários dos portugueses, eram insultados igualmente. A monstruosidade era associada pelas elites brasileiras aos portugueses que “Não são Portuguezes, não são homens; são monstros mais hediondos que os do Museu Aldrovando.”, conforme denunciava o Jornal de 1822.
Os partidários da independência do Brasil, influenciados pelas idéias do liberalismo do século XVIII, desqualificavam como monstros todos que se contra punham ao regime político liberal-constitucional. Era uma forma de legitimar esse regime, por meio da imagem zoológica. D. Pedro I, por exemplo, que abdicou por conta das pressões internas que o acusava de absolutista, foi assim descrito pelo Jornal O Tribuno do Povo, de 1831: “Já não existe entre nós o monstro que por longo tempo nos embaio; nosso valor o expelio do trono, Brazileiros”.
Durante boa parte do século XIX, os liberais apelidavam os portugueses absolutistas de corcunda. Consoante o historiador Marco Morel (1998), os liberais da América espanhola chamavam os absolutistas espanhóis de corcovados, por conta do ritual dos cumprimentos dos súditos diante do rei, quando se curvavam diante deste. O referido historiador aposta na possibilidade dessa imagem ter chegado ao Brasil, com uma conotação de monstruosidade.
Aqui no Brasil, corcundas serão os partidários do absolutismo português. São os inimigos das “novas idéias” (liberalismo).
São esses conflitos simbólicos, parte integrante da cultura política do século XIX, construindo identidades políticas, imaginários, sempre buscando legitimação diante dos outros.

REFERÊNCIAS

MOREL, Marco. Animais, monstros e disformidades: a “zoologia política” no processo de construção do Império do Brasil. Revista de Estudos Históricos, nº 24, Rio de Janeiro, FGV, 1999.

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