segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Sala de aula não é igreja, "birô" de professor não é altar

José Luciano de Queiroz Aires[1]

Aprendemos com o antropólogo Clifford Geertz a prestar mais atenção a hermenêutica das práticas culturais e as simbologias constituintes. Isso não quer dizer que vou procurar interpretar brigas de galos, nem massacres de gatos. Os atores desse teatro são outros. Mas também brigam entre si, em rinhas diferentes, evidentemente. O palco são as escolas públicas estaduais de Campina Grande, lugares de encenação menos violenta, pelo menos fisicamente, de que a matança de gatos estudada por Robert Darnton, mas nem por isso deixa de evidenciar uma violência simbólica, nos termos do sociólogo francês Pierre Bourdieu.

Os símbolos aqui interpretados são as iconografias de santos e santas católicas, a Bíblia sagrada e rituais de religiosidades praticados em escolas públicas ou em igrejas, com a presença de gestores, professores e alunos. Que significados se inscrevem nessa simbologia e quais suas relações com as escolas? Esse texto, porém, não tem a pretensão de aprofundar nas respostas, se propõe, muito mais a levantar questões. Não esperem uma narrativa historiográfica produto de uma operação densa, com recortes específicos e dimensão empírica sofisticada. Essas linhas são recortes de memórias das observações em campo de estágio supervisionado, acompanhando graduandos em História da UEPB em algumas escolas estaduais de Campina Grande. Comecemos teoricamente.

Segundo o historiador Jacques Le Goff “O Judaísmo e o Cristianismo são religiões da recordação de modo que o livro sagrado e a tradição histórica insistem na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental”. (p. 444) Ele assinala que o ato de rememorar, não pode ser entendido senão como uma prática de cunho também pedagógico. No antigo Testamento, o Deuteronômio, apela para o dever da recordação, no que segundo Le Goff, coloca os judeus como “o povo da memória por excelência.”. (p.444). No Novo Testamento, a redenção será na lembrança de Jesus. No cotidiano, as pessoas são chamadas a viver na memória das palavras de Jesus. Aí reside o sentido pedagógico mnemônico, lembrar o passado e tomá-lo como exemplo de vida a ser seguido. O ensino cristão apresenta-se como a memória de Jesus transmitido pelos apóstolos, seus sucessores. Ainda de acordo com Le Goff: “O ensino Cristão é memória, o culto cristão é comemoração.” (p.445)

Recordar Moisés, Jesus, Pedro, Paulo, Maria e tantos outros, é parte da retórica do ensino religioso. Realizar novenário, celebrações ou qualquer tipologia de culto, faz parte das comemorações que são lugares de memória, na acepção de Pierre Nora. Lugares que se encarregam de lembrar por algo que já se foi, mas parece atemporal em função do processo repetitivo que traz o passado sempre presente, como sendo a essência da escatologia que trará a felicidade humana no mundo sublunar.

São lugares de memória as esculturas de Nossa Senhora, a Bíblia e as celebrações que se realizam nas escolas. Porém, não são inocentes, pelo contrário, representam a moral cristã, simbolizam os valores do ocidente medieval e objetivam legitimidade cristocêntrica. Lidos numa perspectiva pós-crítica de currículo, constroem identidades e formam subjetividades. Como nos lembra Tomaz Tadeu da Silva, pensar a questão curricular nos remete imediatamente para uma pergunta básica: O que ensinar? Esta, por sua vez, está intrinsecamente envolvida em outra também importantíssima: Que cidadão formar, que consciência e que sujeito quero construir?

Acompanho Popkewitz na definição de currículo, na qual

(...) o currículo é uma imposição do conhecimento do “eu” e do mundo que propicia ordem e disciplina aos indivíduos. A imposição não é feita através da força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos de acordo com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir. (apud STEPHANOU, 1998, p. 23)

No mesmo artigo, Maria Stephanou cita outro teórico de currículo, Cherryholmes, se apropriando também de sua conceituação. Para ele, o currículo é tudo que proporcione aprendizado aos alunos nas escolas, explicitamente ou ocultamente, assim como, com as exclusões, com os silenciamentos que nem por isso deixa de formar certas visões de mundo.

Fundamentado nesse aparato conceitual, convido vocês a um passeio pelos rastros de minhas memórias e das anotações dos meus cadernos de campo no que vou chamar de etnografia do estágio. Não vou destacar os conteúdos propriamente ditos, prefiro olhar outras práticas da cultura escolar que, ao meu ver, precisam ser compreendidas relacionadas às relações de poderes.

A LDB (1996), no TÍTULO II- Dos princípios e Fins da Educação Nacional, define onze princípios que deverão reger o ensino público. Entre esses, o “III- pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas’; e o “IV- respeito à liberdade e apreço à tolerância”. (LDB, p. 14).

A legislação educacional, que deverá ser leitura obrigatória na formação dos cursos de licenciatura, está embasada no debate sobre diversidade cultural. Aliás, desde 1968, a tônica das diferenças e as lutas de movimentos sociais diversos têm ocupado espaço relevante nos debates acadêmicos, nas ONGs e até na mídia (embora muitas vezes equivocado). Os profissionais de História precisam, tanto na Educação Básica como nas Universidades, levar mais a sério essas questões, trabalharem na perspectiva das identidades e alteridades como construções contingentes, sem essencialismos ou naturalização de valores que são culturais, portanto, humanos. Retornando ao título do artigo, precisam olhar a escola como espaço das diversidades, por isso, não deveriam fazer delas mais um templo sagrado que legitima o cristianismo deslegitimando outras crenças e até a falta de crenças. Aulas de História não deveriam ser uma espécie de retomada dos sermões jesuíticos nem lugar para evangelização. Se assim for, os profissionais vão na contramão da LDB, da Constituição Federal, e mais importante ainda, dos fundamentos teórico-historiográficos de sua própria formação. Ou seja, lêem na academia para justamente fazer contrário nas práticas pedagógicas (inclusive nas academias, que é muito pior ainda).

No dia 10 de setembro de 2007, observando a aula do estagiário Joiran, em uma turma de 2º ano do Ensino Médio na Escola Estadual da Prata, quando o aluno propunha uma discussão sobre identidades locais e se reportou aos estereótipos da baianidade, uma aluna fez uma intervenção e afirmou: “Axé é macumba”. Outras aulas sobre a escravidão, quando estagiários se referiam às práticas culturais afro-descendentes, sempre um aluno ou uma aluna faziam uma intervenção preconceituosa, demonizada e pejorativa da religião e religiosidade como candomblé e umbanda. O que deve fazer um profissional de História nesses momentos? Fechar os olhos? Deixar esse conhecimento prévio sem nenhuma problematização? Ou pior ainda: reiterar essas afirmações extremamente desrespeitosas para com a cultura do Outro? Laura de Mello e Souza pode muito bem auxiliar os historiadores e historiadoras nesses momentos. Ela mostra, no livro, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, como a Igreja Católica justificou o projeto de colonização e escravidão na América portuguesa, de tal forma que os sentidos da colonização não eram apenas econômicos, mas, também culturais. O Brasil colonial era o paraíso de brancos e o inferno dos negros. Por que os negros tinham que ir para o inferno? Consulta Laura, ela explica muito bem.

A escola e seu currículo, pelo que tenho visto, (para nem pensar na universidade!!!!), têm se encarregado de continuar essa visão de mundo dicotômica e maniqueísta de “religião de Deus” e “religião do demônio”, uma, “normal”, a outra “anormal”; uma, que “salva”, a outra, que não leva as almas ao céu, e sim, as “profundezas do inferno”. É assim que estamos tratando o multiculturalismo, nos deslocando do ofício de historiador para o trono divino do juízo final a condenar os “pecadores” e “salvar os puros”? Essas definições de norma e transgressão são naturais?

A essa altura, preciso voltar ao inicio do texto para não perder o fio da meada. Volto e não volto sozinho. Trago Geertz, Darnton, Cherryholmes, Popkewitz, Bourdieu e Stephanou comigo, já que começamos a conversa juntos.

Sei que é preciso investigar mais a fundo, fazer recortes nos tempos e espaços, ouvir os atores envolvidos no processo educacional. Muitos trabalhos poderão seguir nessa direção de uma cultura histórica cristã nas escolas ditas laicas. Vou apenas falar da minha interpretação dos signos dessa cultura que se apresentam em espaços educacionais.

Nas escolas que visitei, em sua grande maioria tinha uma estátua de Nossa Senhora ou uma Bíblia Sagrada, às vezes na sala da Direção ou dos professores, mas também na entrada central das mesmas. Numa determinada escola, obrigatoriamente, quem tiver que adentrar por ela passará em frente a uma espécie de nicho com uma imagem de nossa Senhora. É ela q recebe a todos que passar do portão de entrada. Escola é templo? E se lá tivesse uma estátua de Iemanjá, velas coloridas, perfumes e flores brancas? Ou uma pomba gira, seminua, pintada de batom com uma porção de sutiãs e calcinha ao seu lado? Ou um preto velho fumando cachimbo? Não estou propondo a inversão dos símbolos, apenas provocando para que possamos investigar mais as representações e o imaginário das religiões afro-descendentes no campo da cultura escolar.

Vejo esses símbolos cristãos nas escolas públicas como a briga de galos balinesa, porque lá, de acordo com Geertz os conflitos da comunidade apareciam nas lutas físicas dos pobres inocentes galos. Também se assemelha ao massacre de gatos interpretados por Darnton, porque na tipografia francesa do século XVIII, os trabalhadores se vingaram da exploração dos patrões pela via indireta da morte dos gatos. No meu caso, as brigas e os massacres também são simbólicos, violentam duplamente com quer Bourdieu: se afirma sobre outras religiões e crenças e oculta a face mais cruel da dominação. São simbólicos, mas são reais, se pensarmos que na Irlanda católicos e protestantes brigam mais do que galos e morrem mais do que gatos. São reais se pensarmos que no Oriente Médio, judeus e muçulmanos se atiram num ódio religioso milenar. Que terreiros de candomblé foram/ainda são perseguidos pelas forças repressivas da sociedade política. E nós, historiadores, vamos ficar morrendo de rir, como os tipógrafos de Saint Severin ao encenar o enforcamento dos gatos? Vamos permitir que o currículo ajude a manter ódio e conflitos entre os diversos, colaborando, assim com o preconceito e as guerras?

REFERÊNCIAS

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. 2 ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2006

GEERTZ. Clifford. A interpretação das culturas. R.J., LTC editora, 1989.

DARTON, Robert – “Os trabalhadores se revoltam: O grande massacre de gatos na rua Saint-Severin)” in: O Grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural Francesa, São Paul: Graal,1988.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: A Problemática dos Lugares. In: Projeto História. nº 10, 1993, p7-28.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias de Currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

STEPHANOU, Maria. “Currículos de História: instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar”. In: Revista Brasileira de História, vol. 18, nº. 36, 1998, p. 15-38.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz -feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.



[1] O autor é Doutorando em História pela UFPE, Mestre em História pela UFPB e Professor do Departamento de História e Geografia da UEPB.